quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Lamber, beber e falar

O leitor Marcos (RJ) uma vez mais nos oferece a oportunidade de ampliar este blog. Diz ele: "'Poeta é um ente que lambe as palavras' (Manoel de Barros). O etimologista também lambe as palavras, não é mesmo? (...) Qual a etimologia de 'lamber'?"

Marcos, "lamber" nos remete ao verbo latino lambere, "passar a língua sobre". Em outros momentos, "lamber" também se associou ao ato de beber. No antigo francês, havia uma expressão típica dos estudantes enquanto se dirigiam à taberna: — Lampons! Que podemos traduzir por um animado "Vamos beber!" ou, mais livremente: "Línguas na bebida!".

Aquele grito de guerra dos estudantes medievais ligava-se também à ideia de que, bebendo, suas línguas ficariam soltas, em sintonia com o proverbial in vino veritas!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

A invasão das mentes

De uns 10 anos para cá, as livrarias assistiram à chegada de vários títulos com a palavra "mente" em destaque:
Mentes roubadas, fechadas, femininas, interligadas, inquietas, brilhantes e treinadas, que mudam e criam manias, vêm e invadem as nossas próprias mentes.

A palavra "mente" provém do latim mens, "razão", "inteligência", mas é interessante mostrar sua íntima ligação com outras duas palavras latinas, memini, "lembrar-se", e mentio, "menção".

A mente relaciona-se, portanto, com a memória e com nossa capacidade de propor, de dar a conhecer. A palavra "comentar" também quer aparecer por aqui, significando aquilo que se diz ou se escreve quando (ou enquanto) outro alguém menciona algo.

Existe o verbo "mentar", reunindo as três facetas: trazer à mente (recordar), fazer menção e criar algo na mente, arquitetar, bolar.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Etimologia na balança... ou na corda bamba

Cecilia Cavalheiro, leitora assídua deste blog, pergunta: "você poderia dar o significado de Equilíbrio?"

A palavra procede do latim aequilibrìum, formada por aequus, "igual", "idêntico", e libra, "balança". Num jogo de futebol equilibrado nenhum dos times se sobressai. O gol é um desequilíbrio que leva uma das torcidas ao êxtase... e a outra, ao desespero.

O equilibrista é aquele que, dançando e balançando, se mantém no equilíbrio desequilibrado, retrato da vida humana.

sábado, 16 de outubro de 2010

Sexo e masturbação

Perguntaram-me pelo formspring sobre a origem etimológica de "sexo" e "masturbação".

No livro Palavras e origens, explico que "sexo" remete-nos ao verbo latino secare ("cortar", "dividir", "separar"), indicando a separação entre homens e mulheres.
Quanto à "masturbação", uma hipótese (considerada por muitos autores como fruto de masturbação mental...) é que provenha de *manstuprare (do latim vulgar), composta por manu ("mão") + stuprare ("deflorar", "forçar", "desonrar").

A etimologia, neste caso, seria tão abusiva quanto a própria ação de estimular manualmente o órgão genital.

No antigo latim, havia várias alusões humorísticas à masturbação. Uma delas referia-se à mão de quem se masturbava como amica manus ("a mão amiga"), especificamente a esquerda, pois a mão direita era dedicada a tarefas mais nobres.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Forró dos enfezados

Mais um leitor se manifesta e pergunta: "Olá! Eu estou adorando ler o seu livro e seu blog. Nas considerações iniciais do livro, você cita dois exemplos de 'etimologia popular', com significados falsos: 'enfezado' e 'forró'. Eu já escutei essas duas versões e fiquei curioso para saber a real origem."

É pura fantasia, mas incrivelmente muito difundida, a atribuição de "forró" ao inglês "for all" ("para todos"), enfatizando que seria uma festa do povo, sem discriminações de nenhum tipo.

O certo, porém, é que provém do termo africano "forrobodó". O estudioso Nei Lopes, em seu Novo dicionário banto do Brasil, informa que se trata de hibridismo banto-português, com o significado de "confusão", "farra", ganhando o sentido de "festa animada".


Equivocadamente, costuma-se dizer que "enfezado" é aquele que está cheio de fezes e, portanto, anda irritado, zangado, de cara amarrada.

A autêntica etimologia da palavra é outra. Não tem nada a ver com intestino preso. A palavra deriva do latim infensatum, referente a uma atitude de hostilidade defensiva. O enfezado está no seu canto, encolhido de medo, assustado, mas fazendo aquela cara feia, para defender-se, com raiva (mas no fundo é fragilidade...), respondendo sempre com rispidez, ameaçando agredir o primeiro que se aproxime.
Uma excelente oportunidade para o enfezado se soltar, e ganhar coragem para conviver melhor... é cair no forró!

domingo, 10 de outubro de 2010

Vamos de Balaio de Dois?

O Balaio de Dois (com Paulo Netho e Salatiel Silva) é uma ótima opção de divertimento para crianças e adultos que queiram comemorar a poesia e a música nos próximos dias (ver mais abaixo). Um momento deles...


E de onde vem a palavra "balaio", o cesto?

Não se sabe ao certo. Uma boa possibilidade, porém, é que provenha do latim medieval *balagiu, palha recolhida em cesto, a partir do latim palea, "palha". Por metonímia, o conteúdo passou a denominar o continente.

Dica: Balaio de Dois nos dias 10, 16, 17 e 30 de outubro, às 14h30. Entrada franca - Sala de leitura infanto-juvenil da Biblioteca Sérgio Milliet - Centro Cultural São Paulo. (Com intérprete de Libras no dia 30 de outubro.)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O inferno nos dentes

Escreve um leitor: "Lendo a explicação sobre a palavra 'tartaruga', pergunto sobre a palavra 'tártaro', com significado de calcificação da placa bacteriana sobre os dentes."

Caro leitor, um dos significados para "tártaro", como registram os dicionários, é a substância espessa originária do suco de uva, encontrada também nas paredes dos barris de vinho. Por analogia, indica qualquer tipo de crosta ou sedimento.

No caso do tártaro dentário (odontolitíase), é um depósito duro, esbranquiçado, que surge sob as gengivas ou na borda dos dentes, formado basicamente de fosfato de cálcio, partículas de alimentos e bactérias.

Voltamos ao grego tartaros, pelo latim medieval tartarum. A dureza da incrustação é o que justifica a referência ao mundo inferior ("infernal"), rochoso, das profundezas, tartáreo. O sentido odontológico, baseado na analogia que expliquei acima, começou a ser registrado no início do século XIX.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A tartaruga herética, musical e virtuosa

Um leitor pergunta sobre a origem da palavra "tartaruga".

Os antigos olhavam com pouca benevolência para a tartaruga. Viam nela algo de tortuoso, de assustador. No grego, tartaroukhos significava aquele ser que habita o Tártaro, o mundo inferior, os infernos.

Do latim medieval *tortuca evoluiu-se para tortue, no antigo francês. Que tortos caminhos são os da tartaruga? Um animal que vem do submundo, e carrega sobre as costas um vestígio desse lugar tenebroso! Sua lentidão inspirava ideias de heresia.

Lembremos, porém, que existia entre os latinos um tipo de lira formado pelo casco da tartaruga. E modernamente, em certas histórias, a tartaruga aparece como símbolo de virtudes como a paciência e a persistência.

domingo, 3 de outubro de 2010

O voto é sagrado

Um leitor (eleitor!) perguntou-me hoje a origem do verbo "votar".

Tínhamos no latim vulgar *votare, que procedeu de vovere, "obrigar-se", "prometer solenemente".

Há em princípio um sentido devocional em votar. Uma pessoa pode devotar-se aos pais, devotar amizade a alguém, votar, dedicar seu tempo, sua vida à ciência, a uma causa etc. Entre os católicos, fala-se em "missa votiva", celebrada como cumprimento de promessa feita a Deus. E há os que fazem votos de castidade, de pobreza, de obediência.

"Bodas" também tem a ver com votos. Do latim vota, que é plural de votum. São promessas de uma vida em comum, bodas de ouro, de diamante, de brilhante...

O sentido moderno de manifestar desejo, de aprovar com sufrágio, expressando opinião própria, nasce no século XV. O verbo votar acabou se tornando mais popular e corriqueiro do que "sufragar", inicialmente mais adequado, a partir do latim suffragium, em relação com fragor, "quebrar" (o silêncio), "clamar".

sábado, 2 de outubro de 2010

Fora da etimologia não há salvação

Meu amigo Pedro Paulo Monteiro, pensador e escritor, escreveu-me pelo Facebook: "Meu amigo, mais um desafio. A palavra 'SALVAÇÃO' segundo Jean Yves Leloup em hebraico quer dizer 'Respirar ao largo'. Perguntei a um especialista na língua hebraica, e ele me disse que isso não faz sentido. E agora? Qual a etimologia da palavra 'SALVAÇÃO'? Saudades de nossas conversas. Um abraço."

Caro Pedro Paulo, será que existe salvação fora da etimologia?

Você menciona Jean-Yves Leloup, e num de seus livros, de fato, ele diz que o sentido da palavra "salvação" em hebraico é "respirar à vontade" (Nomes de Deus, Unesp, 2002, pág. 35).

Consultando o Dicionário hebraico-português & aramaico-português, de Nelson Kirst e Rudi Zimmer (Sinodal / Vozes), descubro que a noção de salvação está associada a bem-estar, beleza, segurança, prosperidade, libertação, claridade. Não vejo por que, em alguma medida, a livre respiração não estaria incluída no vasto campo semântico das coisas boas!

Antes de receber no latim eclesiástico a conotação mais radical de salvação eterna, o adjetivo salvus, entre os antigos romanos, estava relacionado ao que é "inteiro", "intacto", e, portanto, ao que se encontra em bom estado. Uma pessoa com boa saúde (respirando bem!) está salva, neste sentido físico ou fisiológico.

O latim salvus nos remete a *solwos, no indo-europeu, com base em *sol-, que mais tarde formará o grego
holos, "todo", e, no latim, solidus, "firme", "real", "total" (a expressão latina "solida libertas" significa "liberdade completa").

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Entre o cuspe e o mármore

O frequente leitor deste blog, Marcos, do Rio de Janeiro, pergunta: "Nada de 'esculpido e encarnado' ou 'esculpido em Carrara'... É mesmo 'cuspido e escarrado', certo, professor? Com você, a palavra..."

Em Mas será o Benedito? (Globo, 1996), Mário Prata diz que pairam dúvidas sobre a origem da expressão "cuspido e escarrado", significando que duas pessoas têm feições muito parecidas. Refere-se o autor a duas versões. Ou seria corruptela de "esculpido e encarnado", ou de "esculpido em (mármore de) Carrara".

Já Reinaldo Pimenta, no primeiro volume de A casa da mãe Joana (Campus, 2002), não menciona Carrara e afirma que a expressão original é "esculpido e encarnado". A frase (exemplo mais citado) "o filho saiu ao pai, esculpido e encarnado" nada tem a ver com mármore ou cuspe.

No Dicionário UNESP do português contemporâneo (2004), cujo prestigioso organizador é Francisco S. Borba, explica-se que "cuspido e escarrado", equivalente a "idêntico", "exatamente igual", nasceu de "esculpido e encarnado". De Carrara nem sombra.

Na fala popular trocadilhesca, os conceitos mais elaborados (esculpir e encarnar) são substituídos pela ação que indica desprezo (cuspir e escarrar). Esta reação brincalhona é bem típica.