sábado, 8 de maio de 2021

A chacina e a carne humana

Várias fontes etimológicas afirmam que a palavra chacina, sem a atual conotação dominante de massacre de seres humanos, proveio da expressão do latim vulgar *caro siccina, em referência à carne-seca. 

Também em nossa língua chacina significa carne de porco e de outros animais salgada ou ressecada. No espanhol, cecina, com a mesma origem etimológica, possui apenas o significado culinário. Na língua galega, ocorre o mesmo com o termo chacina.

O ato de chacinar, isto é, abater e esquartejar porcos ou bois, permitiu a associação entre chacina e homicídio em massa. Parece ser uma transposição exclusiva em língua portuguesa. No Brasil, há vários exemplos em textos jornalísticos a partir dos primeiros anos do século XX, o que revela a percepção da extrema crueldade desse crime.


domingo, 11 de abril de 2021

Com quantas pessoas se faz uma aglomeração?

Uma aglomeração se caracteriza não tanto pela quantidade do que se junta, mas pela própria dinâmica em jogo: reunião de pessoas e junção de coisas.

No latim, glomus significa "novelo" (amontoado de fios). Com quantos fios se tem um novelo? Mesmo pequeno, um novelo é um novelo.

Também a aglomeração de pessoas não supõe necessariamente uma grande multidão.

A raiz indo-europeia *ghodh, que remete às ideias de "união" e "ligação", e está na base longínqua da palavra "aglomeração", refere-se a um ajuste de duas ou mais realidades. O novelo, na verdade, não é um amontoado qualquer. Tem uma lógica interna.

Igualmente no caso da reunião de várias pessoas, existe sempre, em tese, uma razão para agrupá-las. E esta razão tem de ser uma boa razão. Não à toa aquela raiz indo-europeia *ghodh leva ao inglês good. Toda união será adequada e justa, se estiver em sintonia com objetivos bons.


Se a aglomeração, com uma quantidade grande ou pequena de pessoas, for prejudicial por algum motivo, será melhor manter o distanciamento físico. Lembrando que, mesmo assim, é possível unir as pessoas virtualmente.

quarta-feira, 31 de março de 2021

Ponha essa máscara!

As máscaras expressam o que nossos rostos nem sempre podem mostrar. Foram usadas nos espetáculos dramáticos e nas festas religiosas do passado remoto. Continuam vivas nos bailes carnavalescos. Mas também cumprem finalidades mais pragmáticas, como no caso dos médicos e outros profissionais da saúde, a fim de prevenir contágios e infecções.
Na Europa da primeira metade do século XX, a máscara era item necessário contra os gases tóxicos usados como arma de guerra. Os militares e a população civil a utilizavam. Hoje, outro tipo de guerra nos obriga a incluir a máscara como parte do vestuário cotidiano. Na atual pandemia, todos precisamos usá-la para nos defender do inimigo comum, o SARS-CoV-2.

A palavra “máscara” chegou às línguas europeias proveniente do árabe maskahrah (“bufão”, “palhaço”, “zombeteiro”). A ênfase recaía, portanto, no aspecto teatral e lúdico, com um colorido nem sempre positivo. Daí, possivelmente, a ideia de que é preciso “desmascarar” alguém.

O termo árabe ganhou espaço para designar esse objeto que cobre o rosto e cria uma "segunda face", e foi sendo assimilado pelo italiano (maschera), pelo francês (masque), pelo inglês (mask), pelo espanhol (máscara).
Contudo, os etimólogos oferecem outras hipóteses. A palavra pode ter vindo do catalão mascarat ("disfarçado"), ou de uma fantasiosa combinação de palavras espanholas "más que la cara", que resultou em máscara, "algo mais do que a cara" de quem a põe.
A ampliação semântica, ao longo de séculos, foi incluindo na lista de acepções significados antigos e modernos, conforme vimos acima.

Incluiu a máscara mortuária, feita de cera ou gesso sobre o rosto do recém-falecido, para guardar as feições da pessoa com o máximo de fidelidade. Incluiu a máscara facial (uma bela redundância!), procedimento estético. E a máscara de mergulho, voltada para a prática da pesca submarina.

Lembremos ainda que no mundo dos super-heróis e seus arqui-inimigos as máscaras têm por função caracterizar melhor e ao mesmo tempo proteger a verdadeira identidade dos personagens. Nas aventuras do anti-herói Máskara, interpretado por Jim Carrey, a máscara supera esse papel e torna-se ela mesma a grande protagonista.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Agulha agulhinha

Perguntaram-me, a propósito da seringa, onde estaria a agulha?

No latim, acus significava "agulha", e daí a penetrante palavra "acupuntura". Em termos psicológicos, acus produziu "acuidade", que remete à penetração e agudeza da mente, à sutileza e finura do raciocínio.

Especula-se que em latim vulgar tínhamos a palavra acūcla, diminutivo de acus, que resultou em agulla (português arcaico). Toda agulha seria, na verdade, agulhinha.

domingo, 3 de janeiro de 2021

O canto da seringa

A etimologia da palavra seringa está associada à forma tubular. Na mitologia grega, Syrinx foi a ninfa que, para escapar do assédio sexual do deus Pã, pediu às suas irmãs que a transformassem num caniço. Este caniço, nas mãos de Pã, é instrumento musical que exprime uma voz cheia de tristeza e melancolia.Numa peça para flauta que Debussy compôs e se intitula Syrinx, podemos ouvir essa voz.

Seringa, na língua portuguesa do século XVI, referia-se justamente à flauta de Pã. A ortografia da palavra ainda apresentou oscilações: siringa (século XVII), xeringa e xiringa (século XVIII), sirínga (século XIX). Do ponto vista semântico, também ganhou novas possibilidades, das quais a mais conhecida e atual é a de bomba portátil usada para aplicar injeções ou retirar líquidos do organismo.


domingo, 17 de maio de 2020

Quem inventou a reinvenção?

Muito comum ouvir, em momentos de crise, que é necessário reinventar-se. A vida só é possível reinventada, dizia Cecília Meireles num poema. As empresas esperam que seus funcionários se reinventem. O mundo clama pela própria reinvenção.
No latim, inventio refere-se à "capacidade de inventar". O verbo latino em jogo é invenire, com uma lista de significados paradoxais que vão do "achar", "encontrar" ao "imaginar" e "adquirir".
Se inventar já é uma difícil combinação de criatividade, busca, descoberta... e sorte, reinventar-se exige redobrado esforço e redobrada sorte.
Voltando ao latim, na formação da palavra invenire temos o verbo venire, com toda a sua exuberância ligada ao movimento. O inventor vai, sai de seu lugar, vive a aventura do conhecimento e da produção.

Só falta agora alguém inventar a palavra "reinventor"! 

terça-feira, 12 de maio de 2020

A pandemia e a panaceia

A doença que se abate sobre determinado povo (demos, em grego) é considerada uma epidemia. Trata-se de algo localizado. O prefixo grego epí indica que a doença se espalha sobre um grupo restrito de pessoas.

Se a doença torna-se algo típico de uma região, é chamada de endemia, entrando em ação aqui o advérbio grego éndon ("dentro", "em casa", "interiormente"). O mesmo advérbio está presente em "endoscopia" (exame do sistema gástrico por dentro) e "endogenia" (cultura que favorece apenas os "de dentro").

Para ser definida como pandemia, a doença deve ultrapassar todos os limites e invadir todos os espaços.

A exemplo do pânico (medo de tudo), do panteísmo (crença de que Deus está em toda parte) e do pandemônio (confusão total), a pandemia recebe sua capacidade de expansão do elemento grego pan ("tudo", "todo").

Afetando a todos em qualquer lugar, a pandemia altera todas as rotinas, e exige medidas extraordinárias. A palavra surgiu como tradução latina tardia, pandemus (século XVII), do termo grego pandemos, em referência ao que é "comum a todas as pessoas". A esta altura, já se conhecia melhor as dimensões do planeta e nenhum cientista sério acreditava que a Terra fosse plana.

Numa pandemia, todo mundo (o mundo, literalmente) se sente ameaçado. E é natural que todos desejem encontrar uma panaceia (remédio que possa curar todas as doenças). O problema é que panaceias são criações do autoengano, que pode se tornar pandêmico também.

sábado, 29 de dezembro de 2018

Etimologia para crianças e curiosos

Ana Lasevicius e eu publicamos pela Editora Moderna, neste ano de 2018, os três primeiros livros da Série "Árvore da Palavra". São exercícios de imaginação e pesquisa em torno de palavras que nascem numa Vogueira, numa Consoanteira ou num Pé de Ká-dábliu-ípsilon.
As ilustrações são da autoria de Bruno Algarve, que trouxe para a brincadeira linguística sua própria interpretação.
A etimologia para crianças (e curiosos) desperta possibilidades de compreensão. As palavras suscitam histórias. A invenção não está assim tão distante da ciência.
Na Vogueira, por exemplo, tem a palavra "esperto":
ESPERTO
 Esperto é aquele garoto maroto
que foi morar muito longe
e por isso ficou ex-perto?

NÃO!

ESPERTO vem do latim EXPERTUS,
e significa estar desperto, acordado,
com os olhos e os ouvidos bem abertos,
pronto pra agir.

Esperto mesmo é o sujeito
que chega perto de tudo,
olha, pergunta e cheira
pra saber do que é feito o mundo.

E em 2019 tem mais!

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Todo turista um dia volta

Num dado momento de sua história (lá pelo século XVII), a palavra "turismo" esteve ligada ao francês tour, com o significado de uma pequena viagem a algum lugar. Em tour, porém, percebemos implícita a ideia de regresso ao lugar de origem, ideia já presente em uma etapa etimológica anterior: no latim tornare, "voltar".

O turista vai... mas retorna. Vai para voltar, aliás. Não muda de ares definitivamente. Seu movimento típico é o de ir e voltar, para poder partir de novo. O tour do turista é um passeio feito por prazer, com paradas ocasionais e data marcada para pisar de novo a terra natal.



O turismo consiste em dar uma volta, longa ou curta, em fazer um contorno (outra palavra associada a tour). O intuito é contar depois nossas experiências viageiras aos amigos e parentes que ficaram em casa. Não à toa a profissão de travel-writer já foi ligada à ideia de turismo, pois o escritor-viajante sempre retorna... com muitas histórias.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A luta do atleta

No antigo grego, athletés significava "lutador". O atleta é quem luta contra algum adversário, ou para superar-se. Veja o vídeo.




domingo, 8 de maio de 2016

Tchau! — A interjeição que ia e vinha

De 1880 a 1930 tivemos o período mais intenso de imigração italiana no Brasil. Foi nesse momento que começamos a usar a interjeição "tchau", do ciao lombardo e do ciau piemontês, saudação informal tanto para o início de um encontro como para a despedida. Ou seja, "tchau" equivaleria a um "olá" de quem chega e a um "adeus" de quem se vai.
Esta saudação italiana é abreviação de schiavo ("escravo"), que provém de sclavus (latim medieval). Um hábito europeu muito antigo era o de cumprimentar alguém, dizendo: "seu obediente servo", "seu escravo". Um gesto de cortesia hiperbólica equivalente à nossa fórmula "seu criado". A pessoa se apresenta a outra, inclina de leve a cabeça, talvez, e diz: "Sou Gabriel, seu criado". A expressão "Servus!", como cumprimento, pode ser encontrada até hoje em regiões da Áustria, Alemanha, Eslovênia e outras da Europa central.

Atualmente, o nosso "tchau" perdeu até mesmo a sombra deste significado. Não é mais uma forma polida de colocar-se à disposição para ajudar o outro. Tornou-se um cumprimento de despedida exclusivamente. Podendo, no diminutivo, "tchauzinho", indicar um aceno sem maiores compromissos.

domingo, 27 de dezembro de 2015

A gorjeta é antiética?

A etimologia não é disciplina da filosofia moral, mas pode lançar alguma luz sobre a questão.

A ideia da gorjeta é a de oferecer um "agrado" em forma de dinheiro para uma pessoa que prestou um serviço, e o fez de modo generoso. Quem a dá tem a intenção de manifestar gratidão e, em geral, fica com a expectativa de que numa próxima oportunidade o "agraciado" terá ainda maior disponibilidade para prestar aquele mesmo serviço.

A palavra se registrava em português no século XVIII na forma de "gurgeta", o que evidencia com mais clareza sua ligação com o latim gurges ("goela", "garganta") e seu parentesco, por exemplo, com "regurgitar" (ato de expelir algo pela garganta).

O sufixo -eta (que forma diminutivos) pode ter a ver com a quantidade daquela gratificação espontânea. A gorjeta é um valor pequeno que serviria apenas para "molhar" a garganta (ou a mão, que ficará mais ágil para fazer alguma coisa) de alguém (do garçom, do entregador de malas, do taxista, do manobrista, do engraxate etc.), "incentivando" um serviço "diferenciado", ou providenciando pequenos privilégios futuros.

Antes de se tornar uma quantia de dinheiro, a gorjeta era um copo d'água ou um gole de café ou de outra bebida, algo feito por generosidade, um gesto de humanidade. Por isso ainda usamos expressões como "cafezinho" ou "cervejinha" para indicar o suposto destino que aquele "dinheirinho" extra terá ou deveria ter. Em francês, gorjeta é pourboire (literalmente, "para beber"); em alemão, é Trinkgeld ("dinheiro ou troco para beber"); em espanhol, é propina (remetendo ao latim propinare, "dar de beber"). A palavra "propina" em nossa língua ganhou conotações negativas. Em italiano, gorjeta é mancia, em referência à manga da túnica que cobria a mão na hora de dar a "caixinha" discretamente, como se fosse uma ação meio vergonhosa.

O fato é que a cultura da gorjeta ganhou espaço e tradição em boa parte do mundo. Muitos já contam com essa "doação", que pode ser incorporada como algo normal (a taxa de serviço nos restaurantes), ajudando o profissional a reforçar o seu salário.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

A raiz etimológica da árvore de Natal

A árvore é um dos símbolos mais ricos, em todos os tempos, nas mais diferentes culturas. A árvore de Natal, desde a Idade Média, no ocidente, possui as suas peculiaridades. Conta-se que São Bonifácio (680-754), evangelizador da Alemanha, derrubou um carvalho (a "árvore do trovão", dedicada aos deus Thor) com uma só machadada, o que lhe teria dado autoridade para escolher como árvore substituta o pinheiro, símbolo de Jesus Cristo.

A palavra tem sua raiz em arbor, que em latim significava não só a "árvore", entendida como vegetal com as maiores dimensões, mas também "objeto de madeira" (como um mastro ou um remo) e, por extensão, "navio".

A palavra tem alguns desdobramentos. Arbustum, em latim, significava "bosque" ou qualquer lugar onde houvesse um conjunto de árvores. "Arbusto", por sua vez, provém de arbuscula, isto é, "arvorezinha". Uma rua "arborizada" é uma rua cheia de árvores. O esporte radical canopy, que consiste em caminhar por entre as copas das árvores, começa a ser conhecido entre os falantes da língua portuguesa como "arborismo", um neologismo.

Voltando à árvore de Natal, seus enfeites possuem também outros tantos significados. As bolas coloridas representam os frutos da vinda de Cristo à terra. A estrela no topo da árvore indica o fenômeno celeste que guiou os reis magos. Há quem acrescente bengalinhas, que evocam o cajado dos peregrinos mas também o de Jesus, o Bom Pastor.

Quanto mais enfeitada e brilhante a árvore natalina estiver, mais saltará aos olhos, no plano simbólico (no plano que une as pessoas em torno de determinados significados), o nascimento de Jesus como acontecimento carregado de beleza e fertilidade. Aliás, os primeiros filósofos cristãos referiam-se a Cristo como arbor vitae, "árvore da vida". 


quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Armas alarmantes

Quem fabrica armas tem em mãos um produto alarmante. E precisa que o mundo esteja sempre em estado de alerta e alarme. Para vender e lucrar.

A palavra "alarme" nasceu de uma antiga exclamação italiana "all' arme" (século XIV), isto é: "às armas!". A expressão foi substantivada e chegou até nós pela forma francesa alarme. Em português temos "alarma" e "alarme". No primeiro caso, a arma vai para o singular; no segundo, a presença armada, guardando ressonâncias do plural, fica menos visível.


Arma, por sua vez, provêm do latim armus, "braço" (lembrando que este é o significado de arm, em inglês, e Arm, em alemão). A arma é uma extensão potenciada do braço. O armário era originariamente o lugar em que se guardavam as armas.  

Não sejamos alarmistas, mas todo alarme é falso, se pensarmos nos resultados invariavelmente destrutivos. 

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Nas teias do Homem-Aranha

Um dos heróis do século passado que ganharam evidência cinematográfica nos últimos dez anos foi o Homem-Aranha. A palavra "aranha" remete ao latim aranea. Havia muita desconfiança contra o aracnídeo. Era considerado traiçoeiro. Erasmo de Rotterdam chegou a registrar esta frase: "Aranearum telas texere", referindo-se aos sofistas que tecem argumentos como a aranha tece a sua teia.

O ser fascinante que desenha no ar a sua teia-armadilha humanizou-se, tornou-se defensor dos fracos, lutando contra criminosos não menos bizarros. Em inglês, spider tem a ver com o verbo to spin, "fiar", "tecer". A frase "the spider spins skilfully" é uma redundância. Como se disséssemos em português: "o tecelão tece o tecido".

O Espetacular Homem-Aranha
O Homem-Aranha nasceu Spider-Man e envolveu o mundo moderno com sua teia: Uomo Ragno em italiano, Hombre Araña em língua espanhola, Homme Araignée em francês, Spinne em alemão e... Hämähäkkimies em finlandês (só não me perguntem como se pronuncia e qual é a origem dessa última!).

terça-feira, 22 de abril de 2014

O santo que matou o dragão

São Jorge, um dos santos mais venerados no mundo. O santo guerreiro tornou-se padroeiro de países como Inglaterra, Lituânia, Sérvia, Etiópia e de cidades como Londres, Barcelona, Gênova, Moscou e Beirute. Dia 23 de abril (em que se recorda o seu martírio) é feriado no Rio de Janeiro.

Não renegou a fé cristã durante a sangrenta perseguição ordenada pelo imperador Diocleciano no início do século IV. Foi torturado até a morte. Lutou corajosamente. Venceu o dragão da maldade. No candomblé, São Jorge é identificado com Ogum. Os devotos de Jorge e Ogum querem ser fortes e vitoriosos.

Para vencer o dragão é preciso saber quais são os seus poderes etimológicos. A palavra está associada ao latim draco, que se relaciona com o verbo grego derkomai, "ver". O dragão é aquele que consegue enxergar a sua presa a uma grande distância. Como ser demoníaco, está sempre de olho em possíveis vítimas. Para vencê-lo, portanto, temos de desenvolver a visão da fé. Com a ajuda de São Jorge, é claro!

domingo, 13 de abril de 2014

A cruz crucial

A impiedosa tortura e morte lenta de alguém pendurado numa estaca era prática conhecida desde o século VI a.C. entre povos asiáticos. Os romanos a aprenderam e adotaram. Escravos rebeldes, traidores e ladrões eram punidos assim. Jesus Cristo é o mais conhecido dentre os que padeceram o suplício da cruz. Até hoje, em alguns lugares do mundo como Arábia Saudita, Irã, Birmânia e Sudão, crucificar alguém é, na melhor das hipóteses, uma possibilidade prevista em lei.
A Crucifixão (detalhe),
de Matthias Grünewald (século XVI)
A palavra crux, em latim, não se referia estritamente à cruz como a visualizamos hoje (dois toros transversais) e que se tornou o símbolo maior do cristianismo.


Crux immissa ou cruz latina
Havia tipos diferentes de cruz. Uma primeira diferença existia entre a crux simplex e a crux compacta. No primeiro caso, tratava-se de um objeto vertical de madeira, uma viga, ou mesmo um tronco de árvore. O condenado era amarrado com cordas nessa cruz, ou nela empalado.

Já a crux compacta podia ser decussata (em forma de X), commissa (em forma de T) ou immissa (a chamada "cruz latina", cuja travessa fica acima da metade da haste). Esta, a immissa, é a que conhecemos como sendo a cruz em que Jesus (cordeiro pascal) foi pregado.

Especula-se que a palavra latina crux (passando pela forma colux) veio do termo grego σκόλοψ (skólops), que significava "estaca", "enxadão", "cruz" e outros tipos de objetos que pudessem provocar uma dor pungente.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Golpe dói

Todo golpe dói. Golpe de esperteza (um ardil praticado por um golpista, como no conto do vigário ou no golpe do baú), golpe de luta, golpe de ar ou golpe militar. E de onde vem o golpe, mesmo que seja um golpe de mestre?

No latim vulgar, *colpus indicava um movimento de força, mais especificamente uma bofetada ou um murro no rosto, remetendo ao latim clássico colaphus, que proveio do grego kólaphos.

Em francês, temos a palavra coup, de mil e uma utilidades e desdobramentos. Além do coup d'État, "golpe de Estado" (tomada ilegal do poder governamental pela força), uma bofetada na democracia, temos, entre vários exemplos: coup de grâce ("golpe de misericórdia", ou "tiro de misericórdia", que consiste em dar um ponto final ao sofrimento de um moribundo), e a palavra coupon, o nosso "cupom", folha ou cartão que se pode destacar mediante um coup, isto é, um movimento que implica certa força.

terça-feira, 18 de março de 2014

Um olhar para a Ucrânia

A história da Ucrânia, especialmente nos últimos 100 anos, tem sido marcada por grande instabilidade política, invasões e chacinas, por indefinições, conflitos, crises econômicas, lutas terríveis. A liberdade do povo em constante perigo e muitas vezes suprimida. Lembremos que a família Lispector foge de lá para o Brasil (sorte nossa porque nos trouxe Clarice).

Terá o nome do país, do ponto de vista etimológico, algo a nos dizer a respeito dessa acidentada história?

Indo o mais longe possível, o nome Ucrânia vai nos levar à raiz indo-europeia *krei, que reporta à ideia de "cortar". A palavra grega krínein está em relação com essa raiz e significa "decidir". Toda decisão implica cisão, corte, rompimento. Aparentada, no latim, temos a palavra cernere ("discernir"): todo discernimento provoca definições e delimitações.
Bandeira da Ucrânia
O termo eslavo krajina (também "descendente" da raiz *krei) refere-se à fronteira de um país ou a uma região delimitada. Para que se defina uma região é preciso fazer um corte, definir que até aqui é tal coisa e que a partir daqui é outra coisa.

No antigo polonês, por volta do século XVI, Ukrajina referia-se a territórios que coincidem, em parte, com a atual Ucrânia. Mas foi somente no século XIX que os habitantes da região assumiram o nome oficialmente, não se referindo a um território delimitado em geral, mas ao seu país mesmo. De fato, em ucraniano moderno, країна (Україна é Ucrânia nesta língua) significa justamente isso: país. Indica justamente esse desejo: soberania.

sábado, 15 de março de 2014

Ansiedade em qualquer idade

Entre as doenças candidatas a definirem o perfil patológico do século XXI está a ansiedade. Livros com essa palavra tendem a ser ansiosamente comprados. Esperamos com ansiedade que nos digam, o mais rápido possível, o que fazer para não ficarmos ansiosos... Sentimos a ansiedade presente em toda parte e em gente de todas as idades.

Um piadista me dizia outro dia: "Se você não tem ansiedade provavelmente há algo de muito errado com a sua saúde!". Mas a palavra, tão frequente hoje, de hoje não é. O poeta latino Ovídio (43 a.C. - 17 ou 18 d.C.) conhecia a anxietas animi, a preocupação profunda e angustiante, que torna  a alma pesada... e a vida mais atrapalhada do que já é.

No latim, anxietas remete ao verbo angere: "apertar", "espremer". A ansiedade provoca um aperto interior. A mente se sente esprimida. O coração comprimido. Dores por dentro e por fora se multiplicam. E o motivo, em geral, tem a ver com as incertezas do futuro. Ficamos ansiosos quando antevemos e antecipamos os maiores problemas. Inclusive aqueles que são gerados pela própria ansiedade!

Remontando à raiz indo-europeia *angh-, vamos encontrar a origem das noções físicas e anímicas relacionadas a este cúmulo de sofrimentos. No latim, as angustiae são os desfiladeiros, que nos deixam nervosos só de imaginar... E as aflições morais estão na mesma categoria do mundo estreito e sufocante.

É por isso que o melhor mesmo é relaxar... No latim, relaxare indicava o ato de soltar, livrar alguém da dor.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Os garis estão chegando

Coletar e remover o lixo urbano sempre foi um sério problema. Quem quiser conhecer um pouco dessa história, leia o interessante livro do professor Emílio Maciel Eigenheer - Lixo: a limpeza urbana através dos tempos.

No Brasil do século XIX, o trabalho literalmente sujo era feito pelos escravos com menos status. Era comum ver "cabungueiros" (de kibungu, palavra do idioma quimbundo que significava "latrina") equilibrando sobre as cabeças, em tubos ou barris, o lixo das casas (incluindo excrementos). Sua tarefa era jogar esse lixo em lugares distantes. Todos os dias!

O problema do lixo se tornou especialmente grave no Rio de Janeiro daqueles tempos. À medida que a capital do império crescia, mais sujeira se produzia. As ruas, por exemplo, estavam empestadas com a quantidade imensa de estrume que os cavalos (meios de transporte público e privado da época) deixavam pelo caminho. A vida dos pedestres era uma... miséria! (Faça os cálculos: um cavalo produz cerca de 10 quilos de fezes por dia...)

Entre as tentativas de solução, o Ministério Imperial, em 1876, contratou a Alexis Gary Cia., empresa especializada em limpeza urbana. Seu dono, o francês Pierre Alexis Gary, levava varredores uniformizados pelas ruas cariocas para realizarem o ingrato mas indispensável serviço. A "turma do Gary" fez sucesso. Em pouco tempo, o povão começou a chamar os varredores de garis.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Carona não é cara

carona é uma forma barata e inteligente de contribuir para melhorar o trânsito caótico das grandes cidades.

A palavra procede da expressão espanhola a la carona, que por sua vez remete ao latim caro ("carne"). No meio do caminho, o genitivo carnis ganhou uma forma popular, caronis, e daí foi um pulo para a palavra carona.

A la carona se refere ao que está em contato com a carne. Dizia-se, por exemplo, que alguns santos vestiam roupas finas, mas a la carona (isto é, por debaixo dessas roupas, na sua pele) usavam o cilício como forma de penitência.

Andar de carona é, portanto, um corpo a corpo. Quem dá carona permite esse contato com outra pessoa, em nome da solidariedade e de um trânsito mais humano.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Em busca da sorte

O livro PALAVRAS E ORIGENS está sendo sorteado no próximo dia 20 de janeiro (veja as instruções abaixo). Aproveitando a deixa: de onde vem a palavra "sorte"?

O sortudo será escolhido por sorte, palavra que vem do latim sors. Este termo possuía vários significados. Um deles era "quinhão", "parte", isto é, aquela "parte" que já está reservada no futuro para cada pessoa. Daí que sors também significasse "herança".

O pequeno detalhe é que não temos certeza de que a sorte sorrirá para nós. A sorte pode ser madrasta, alguns loucos abusam da sorte, e há quem a jogue pela janela. O fato é que para tirar a sorte grande (ou pequena) precisamos arriscar e tentar até encontrá-la.


Instruções para participar do sorteio:

DaLíngua Portuguesa, em parceria com a SaraivaUni, sorteará um exemplar do livro Palavras e Origens, de Gabriel Perissé.

PARTICIPE!

1 - Curta a página DaLíngua Portuguesa no Facebook (https://www.facebook.com/dalinguaportuguesa?ref=hl);
2 - Curta a página SaraivaUni no Facebook (https://www.facebook.com/SaraivaUni?ref=ts&fref=ts);
3 - Compartilhe o post da promoção, em modo PÚBLICO, no mural;
4 - Acesse o Sorteie.me na página DaLíngua Portuguesa (https://www.sorteiefb.com.br/tab/promocao/296829) e clique em “Quero Participar”.

BOA SORTE!
Sorteio: 20/01/2014

Sobre a obra: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=644572148897050&set=a.446120652075535.104506.419022991451968&type=3&theater

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Por gentileza!

Natal é uma festa a ser comemorada em clima de alegria familiar. Essa alegria deve irradiar-se e produzir gestos de fraternidade e gentileza.

No latim, gentilis era quem pertencia à mesma família ou clã. Podemos supor que entre pessoas unidas pelos laços do sangue é bem-visto que todos se tratem com respeito, com gentileza. Hoje, ser gentil é tratar todo mundo como gente.

No inglês, a palavra gentleman (que surgiu no século XIII) conserva a ideia de alguém cuja conduta se caracteriza pela boa educação, pelas palavras adequadas, pelas virtudes da convivência, pelos modos cavalheirescos.

No antigo francês, gentil significava "bem-nascido", alguém de família nobre (o que nem sempre significava ser gente fina, mas enfim...).

Voltando ao latim, gens, que designava o conjunto daqueles que possuíam origem comum, recebeu o sentido ampliado de "povo", "nação", "país". Daí a palavra "gentios", indicando os povos estrangeiros, os não civilizados do ponto de vista romano. Mais tarde, na concepção judaico-cristã, "gentios" serão os pagãos.

sábado, 21 de dezembro de 2013

O nascimento do Natal

O Natal é a comemoração do nascimento de Jesus Cristo, mas o dia 25 de dezembro não é a data histórica de sua vinda ao mundo. Aliás, não há indicações bíblicas a respeito. Foi a antiga tradição cristã que estabeleceu esse dia, reinterpretando a festa pagã em homenagem ao deus-sol.

No dia 25 de dezembro, comemorava-se o dies natalis Solis Invicti, isto é, o "dia do nascimento do Sol Invicto". Este Natal pagão radicava-se numa percepção meteorológica e astrológica. No dia 24 de dezembro, no hemisfério norte, os povos tinham consciência de que estavam vivendo o solstício do inverno: o dia do ano em que menos luz solar chegava à Terra.

Mas o dia mais escuro e frio é também o início de uma nova etapa. No dia seguinte, dia 25, o sol começava a voltar de sua descida mais profunda. O deus-sol renascia e vinha ao encontro de seus adoradores.

Para os cristãos, o verdadeiro Natal era o nascimento de Jesus, a luz do Alto que veio afastar as trevas do medo, aquecer nossos corações, revitalizar a esperança, salvar o mundo. A festa pagã foi sendo cristianizada. Ao ver que o hábito se impunha, o papa Libério, no ano de 354, determinou que em toda a Cristandade, no dia 25 de dezembro, seria celebrado o dies natalis Domini, o dia do nascimento do Senhor.

Ao contrário da Páscoa, que acontece em datas móveis a cada ano, o Natal é comemorado sempre no dia 25 de dezembro, mesmo no hemisfério sul, quando se está vivendo o solstício de verão. Ao contrário do que acontece no hemisfério norte, nós temos dias mais longos, mais iluminados, e nossas noites são mais curtas neste tempo de Natal.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Quem dá mais?

A ideia do leilão é antiga. Entre os latinos, a auctio consistia em ir a público vender um bem, à espera de quem oferecesse o maior lance. A palavra latina remete ao verbo augere ("acrescentar", "ampliar"). No inglês, temos a expressão auction off, "leiloar".

Já o nosso termo "leilão" procede, não do latim, mas do árabe vulgar al-alám, com os significados de "estandarte", "tabuleta" e "aviso". Colocava-se em local público e visível uma pequena bandeira vermelha, por exemplo, como convite para participação no leilão. O leilão precisa ser anunciado em alto e bom som para que todos tenham alguma chance de adquirir o que foi colocado à venda.

Em francês, a palavra para leilão é enchère. Nasceu no latim tardio incariare, formado pela partícula in e por carus, "caro". Aquilo que está em leilão é algo que vai sair caro para quem o deseja adquirir. Em espanhol, leiloar é subastar. Vem do latim subhastare, "vender em hasta pública".

sábado, 2 de novembro de 2013

O silêncio do cemitério

Há uma diferença, do ponto de vista etimológico, entre necrópole e cemitério.

Ambas são palavras que vêm do grego, mas com inspirações contrárias. Necrópole é a "cidade dos mortos", de nekrós ("morto", "cadáver"), pólis ("cidade"). A Necrópole de Gizé, no Egito, é um dos maiores exemplos da antiga arquitetura a serviço de um projeto post-mortem.

Para esta cidade se dirigiam o rei-defunto, a rainha e os sacerdotes do reino. A morte é uma viagem sem volta, e o faraó se preparava para essa jornada com imensa preocupação. Após a morte, deveria continuar reinando, mas agora sobre os demais mortos.

 
Já o cemitério possui uma outra conotação. O elemento "-tério" é um pospositivo do grego que se refere ao local onde se realiza o que é expresso pelo antepositivo. O monastério é o lugar onde ficam os monges. O presbitério é o lugar onde ficam os anciãos (os presbíteros). E o cemitério é o lugar onde as pessoas dormem, porque o antepositivo do grego koimétêrion ("lugar para dormir") é o verbo koiman ("dormir").

A palavra começou a ser usada pelos primeiros cristãos, que viam na morte um momento de descanso. Os mortos vão dormir, na esperança de saírem do túmulo. Preparam-se para acordar, tal como Jesus ressuscitado. O cemitério é lugar passageiro, silencioso, um dormitório para uma noite mais ou menos longa: o novo dia está por vir.